A
culpa está disseminada: pelos poetas e pelos escritores (e seus
devaneios românticos e odes à paixão), passando pelos argumentistas e
realizadores (vejam-se as comédias românticas, um dos géneros
cinematográficos mais perniciosos…), pelos contos de fadas e demais
contos infantis, pelas escolas, pela TV, ou mesmo pelo sonho de quem
está apaixonado e quer para sempre assim ficar, ou de quem não está mas
deseja estar, enfim, a cultura ocidental está cravejada de uma mitologia
romântica que nunca passou o teste da realidade. Esta é uma ideia, uma
mentira ensinada às criancinhas (e também aos adultos), que se torna
como que um mantra que, de tanto se repetir, acabaria por se
concretizar…
E não se pense que isto é uma questão de
somenos importância: a criação de falsas expectativas nas pessoas é um
factor destrutivo de felicidade…
O problema é que nunca na
história da humanidade se provou, se vivenciou, o “viveram felizes para
sempre”. Pelo menos na interpretação que nos é transmitida em que
“viveram felizes para sempre” significa “viveram felizes e apaixonados
para sempre”…
Sei bem que as utopias, os sonhos, podem
servir o propósito de pôr o mundo a avançar. Mas não neste caso. É que
não podemos mudar a condição humana! Não podemos mudar, em particular,
os mecanismos biológicos que regem as nossas paixões. Criar ilusões,
fantasias, nunca cumpríveis, só propicia frustração, inquietação,
infelicidade. Não só a paixão não é duradoura, nem sequer é um bom
mecanismo de "matching" de longo prazo. A paixão é um mecanismo
biológico que, na evolução humana, visou criar laços temporários entre
um homem e uma mulher para que a procriação e os cuidados pós-natais
fossem possíveis. A “química” faz com que nos apaixonemos por alguém que
será um bom "matching" reprodutivo (já há estudos que o demonstram) e
não por quem preenche os requisitos para que uma vivência a dois,
sustentavelmente feliz, seja possível…
Contrariar o preconceito
Ninguém
vive, nunca viveu, nem nunca viverá apaixonado para sempre pela mesma
pessoa! Os neurologistas que estudam a paixão já demonstraram como a
paixão se exaure ao fim de dois anos, até porque o corpo não mais
aguentaria: a paixão é um estado alterado de consciência, um vulcão
químico interior que nos torna viciados e obcecados pelo outro. E nem
sequer amamos o outro senão uma idealização que dele fazemos… Os padrões
neurais da paixão assemelham-se aos dos cocainómanos tal é o vício e a
cegueira que de nós se apodera. Por isso, muitos psicólogos aconselham a
que ninguém se case enquanto está apaixonado, uma vez que não
conseguimos aí avaliar se o outro é, de facto, bom para nós…
Toda
esta quimera da paixão misturou-se, na contemporaneidade, com a
instituição casamento (ou vivência a dois), tendo-se passado a exigir
dessa instituição algo para a qual ela nunca foi testada (e para a qual,
objectivamente, não foi criada): a vivência perpétua, plena e feliz,
dos cônjuges… O casamento é uma instituição que foi criada por motivos
económicos para juntar interesses familiares e, mais tarde, para criar
um espaço para a procriação em que o homem provia o sustento e a mulher o
trabalho doméstico. Nesse tempo, a lei e a moral impediam o divórcio e
ninguém exigia que esse fosse um espaço de felicidade. Sendo esta a
história não deixa de ser surpreendente como, de repente, se passou a
demandar do casamento tamanha façanha…
A realidade, porém,
vem sempre ao de cima: a taxa de separações é hoje a maior de sempre,
mostrando a dificuldade da conjugação da independência individual com o
projecto conjugal feliz…
Por isso se torna fundamental
contrariar o preconceito e ensinar as pessoas (e desde a infância) a
conviverem com a realidade e a procurarem os paraísos possíveis. No
final, há sempre lugar a escolhas, mas no espaço da realidade: podemos
querer viver sempre em paixão, num pulular continuado de paixões em que o
amor é “infinito enquanto dura”, mas em que vamos alterando sempre o
nosso parceiro (qual Vinicius de Moraes, que se casou e descasou 9
vezes…); podemos também matarmo-nos (juntamente com a nossa amada)
enquanto estamos apaixonados (quais Romeu e Julieta), cumprindo assim,
efectivamente, o desígnio “viveram felizes para sempre”!; outra
alternativa é construir uma relação a partir da amizade e evoluir para
um amor sustentável; ou aprender a amar o outro, depois de morrer a
paixão que nos ligava, e conviver com a lembrança dessa paixão; ou
alicerçar o casamento num qualquer compromisso (religioso, familiar,
económico, etc.) e manter essa empresa em bom funcionamento…
Enfim,
nesta vida podemos querer ter tudo mas nunca vamos ter tudo. Se
queremos ser felizes é bom estarmos preparados para o real e começar por
não ensinar mentiras às criancinhas…"
Texto de Gabriel Leite Mota • 16/04/2013
http://p3.publico.pt/actualidade/sociedade/7500/e-viveram-felizes-para-sempre-terra-prometida-nunca-encontrada
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